sexta-feira, 9 de julho de 2010

O Milagre de Berna!


O que mesmo fazia ele, sentado sozinho dentro daquele vagão de trem? Rememorando os últimos meses, enquanto esperava o filho retornar do convívio dos campeões, descobriu naqueles dias a efetivação de um milagre.
O pai, a cruz, as lembranças. Aquele despedaçado homem via-se diante de si mesmo como nunca houvera feito antes. Buscava ali, frente ao altar com suas velas crepitantes e sua luz difusa, um sentido e muitas respostas. Encontraria um recomeço.
A lembrança lhe era vívida e doída. Sacado das profundezas seguras da terra fora jogado num conflito que lhe era desprovido de maiores significados. O frio, a fome, o perigo e o medo sim, esses compreendia bem. A liberdade atual, contraste de um longo cativeiro, mais concorria para a confusão dos sentidos.
Os últimos dias cobriam de tons cinzas seu olhar. O antes seguro provedor familiar tornara-se um peso na configuração do lar. Uma década e muitas mudanças. A filha lhe mostrava os traços da mãe. A mãe envelhecida pelo tempo e pelas agruras do dia-a-dia. O filho lhe afrontava. Era já um homem. Afeitos às artes musicais, ainda por cima desafiava-lhe com idéias comuns aos seus inimigos. Isso não podia admitir. Logo ele que tanto sofrera na mão dos “vermelho”. Mas também, o que tinha seu povo de perturbar aquela gente tão acostumada com o gelo? Pensava mesmo que o dirigente da nação esquecera-se de cuidar de seu povo, inebriado pelo álcool do poder.
Mas algo no seio familiar agredia-lhe mais o retorno. Partira sem conhecer que o tempo tinha esperas para entregar. O regresso lhe revelou outro rebento. Mocinho feito. Personalidade forte. Vontades próprias.
E aquela cruz lhe mostrando que somos todos falhos. E o alfinete da consciência lhe mostrando as falhas do retorno. O que mesmo estava a fazer no ambiente sagrado? De certo mais fácil seria o consolo da bebida. Mas tantas foram as dificuldades dos últimos anos que não criaria outra agora.
Absorto em seus pensamentos viu surgir a seus pés o manto negro que, ainda não sabia, lhe indicaria o caminho. A conversa fora longa. Cordial. Sincera. Não raros os momentos banhados por lágrimas que, por certo, não molhavam o rosto do padre. Um vez sim, o pastor de almas chorou. Foi quando ouvia a narrativa do exílio forçado e privado de liberdade do pobre homem.
Ao final, horas passadas, a esperança reencontrada e a certeza de que tudo seria diferente. Não por ter visto uma forma de modificar os seus. O padre mostrara-se alma caridosa e sábia, de modo que sem dizer, apontou o único caminho que lhe podia conduzir à paz. Compreendera no filho paroquial a dor da lembrança e o deslocamento do retorno. Sem muito falar foi conduzindo o diálogo pelo caminho que possibilitou àquele pai ver novamente na família um porto seguro. Seu mundo mudara muito na última década e ele haveria de mudar também.
Em casa as tensões começaram a diminuir, o cinza começava a transladar-se para tons mais vívidos e reconfortantes em sua vida. Os sorrisos multiplicavam-se e o sono já lhe era mais tranqüilo. Foi quando o momento inesperado apontou-lhe a possibilidade de conquista do herdeiro mais novo. Juntos, pai, filho e veículo emprestado foram atravessando a Alemanha rumo ao sul e, quase mil quilômetros depois, chegaram a Berna.
Aquele ano de 1954 havia sido mesmo estranho. A liberdade, vários reencontros, a dura readaptação e o recomeço. Os coelhos da discórdia. De modo que estar ali, defronte um estádio de futebol, vendo o filho fugir da chuva e, esgueirando-se por espaços improváveis, entrar na arena, até nem lhe parecia tão incomum assim.
As últimas horas de convívio tinham aproximado pai e filho e, ao regresso radiante do jovenzinho seguira-se um longo, afetuoso e libertador abraço. Pai e filho num novo começo, num momento de aceitação mútua que indicava um futuro certamente melhor.
Os acontecimentos seguintes empurraram-nos para o trem dos heróis. Hermut Rahn, Fritz e Ottmar Walter, os aplausos, as muitas cervejas e, como um passe de mágica, o retorno a solidão daquela cabine de trem.
Tudo ficou claro. Não havia dúvidas. Vivenciava um milagre. E embora todos estivessem convictos de que a ação divina dera-se com a vitória alemã sobre a estonteante Hungria, ele, e somente ele, sabia que o verdadeiro Milagre de Berna havia posto definitivamente o pai de volta ao convívio da sua família e de si mesmo.

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